Narcisismo e a meritocracia

O discurso da meritocracia descolada da sociedade apresenta-se no século XXI como o mito de Narciso que, conforme a mitologia grega, era muito belo e quando nasceu um dos oráculos, chamado Tirésias, disse que Narciso seria muito atraente e que teria uma vida bem longa. Entretanto, ele não deveria admirar sua beleza, ou melhor, ver seu rosto, uma vez que isso amaldiçoaria sua vida
Além de ter uma beleza estonteante, Narciso era arrogante e orgulhoso. E, ao invés de se apaixonar por outras pessoas que o admiravam, ele ficou apaixonado por sua própria imagem, ao vê-la refletida num lago e foi atingido por uma flechada.

Os brasileiros acompanhando o pensamento ocidental adora exaltar o individualismo e o exército de um homem só, tanto é que os grandes sucessos de Hollywood narram há décadas a mesma história e vendem aos bilhões por aqui. Também inspirado nessa linha, surgem gurus de todos os lados apresentando soluções rápidas e instantâneas de se tornar um “vencedor”, se tornar alguém de sucesso e na carona desse discurso vem a meritocracia que em regra aparece descolada da realidade de sociedade. Quase que como uma receita que você coloca os ingredientes certos, quantidade certa e ao final saboreia o mesmo sabor em qualquer parte do mundo, não atoa os livros de autoajuda estão sempre entre os mais vendidos, adoramos pagar por receitas prontas.  
Geralmente, esses mesmos que entendem que basta querer, que todos podem, que se você não conseguiu foi porque você não quis ou não se esforçou o suficiente para conquistar, do outro lado aparecem os casos de sucesso, aqueles que com sua audácia, persistência e trabalho superou todas as dificuldades e venceu. Veja bem, não estou dizendo que uma percepção elimina a outra, pelo contrário, penso que ambas se complementam, afinal quem não se inspira em histórias de superação? Todavia, a minha crítica é na necessidade de uma reflexão mais aprofundada em que os resultados na vida de cada ser humano é uma sucessão de situações controláveis individualmente e outras que fogem desse controle impactando de forma diferente em cada realidade. Nesse sentido não entendo que exista uma meritocracia absoluta como é disseminada atualmente, pois desde Aristóteles, você aceitando ou não, o ser humano é entendido como ser social e como tal enfrentam diariamente uma organização social objetiva que hora te favorece, hora não. 
Narciso que se voltou demais para si mesmo, mostra que qualquer um de nós pode acreditar demais em suas próprias forças/belezas/vitórias e ignorar o contexto que pertence e assim como Narciso ser surpreendido e derrotado pela realidade que era e é muito mais ampla que o próprio reflexo. A pandemia está aí nos provando isso todos os dias, ninguém a superará sozinho, ninguém chegou nesse momento sozinho, todos nós temos uma história coletiva, temos pais, avós, bisavós que caminharam significativo trecho do nosso caminho. 
Tanto o narcisismo quanto a meritocracia têm nos afastado de uma ação coletiva para superarmos uma série de questões que deveriam ser coletivas nessa pandemia, por exemplo, não usar máscara por vaidade ou não aceitar orientações da ciência por orgulho, tanto num caso quanto no outro não temos o controle, porém não aceitamos que até a meritocracia precisa de contexto. Se compreendermos que a colaboração pode ser um caminho possível, quem sabe saiamos mais fortes e menos vaidosos desse momento?

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